segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Vaga-lumes


Eu devia ter cinco, seis anos no máximo, quando fui com minha avó visitar a família de meu padrinho em uma fazenda linda, uma roça de cacau. A casa era grande e colorida, rodeada por hortênsias azuis e rosas brancas à esquerda, erva doce e rosas cor de vinho à direita. Um cachorro bravo à entrada, amarrado sob o pé de cravo-da-índia, tão bem copado, guarnecido pelas três jabuticabeiras de onde avistávamos a estrada que leva para Camacã.
Era a primeira vez que eu visitava o campo. Fui recebida com o doce e inesquecível sorriso de Dona Hilda, a matriarca. Copo de café à mão, ela solta o coque para ajeitá-lo em nó mais firme, um cabelo índio enorme, quase que da minha altura inteira! Um gato se espreguiça entre minhas canelinhas meninas, mosquitos por toda a parte e eu inquieta.
- Ela precisa se mexer, Dona Elba - disse a dona da casa.
- Venha comigo, Aline, buscar flores para São José.
O papo dela com minha avó parecia não ter fim. Descobri que observar amizade alheia era coisa bonita. Com um ramalhete de várias flores pequeninas, ela me chama para dentro de casa e me leva para um dos muitos quartos, certamente o mais recôndito. Lá morava São José, sobre uma mesa forrada de toalha branca bordada. Se ajoelha e reza.
O dia foi inteiro para eu descobrir coisas que não existiam na cidade. Macaco, tucano, lesma (só eu vi essa parte), cacau, jabuticaba, cravos, muitos cravos pra eu colher, suco feito sem liquidificador, doce feito em tacho, que não se vende em lata, biscoito de polvilho, galinha caipira.
À noite, meu padrinho adentrou ao quarto e me deu um pote de vidro com uma luzinha que acendia e apagava. Disse que era pra me fazer companhia até eu dormir. Intrigada, perguntei:
- Cadê a tomada? Tenho que desligar antes de pegar no sono, não é? Energia custa caro...
Com um sorriso tão doce quanto o de sua mãe, ele me disse:
- Não... não se preocupe, não tem o que desligar. Eu prendi aqui dentro um bichinho que se chama vaga-lume. Ele acende e apaga sozinho, sempre que anoitece. Quando você dormir, eu venho aqui buscar o pote pra devolver ele à noite.
-E eu posso ver onde o senhor pegou ele?
- Pode sim. Venha ver.
Segurei na mão dele, na outra levei o pote. Quando ele abriu a porta da cozinha, lá estavam eles, em balé, brincando de contrariar a escuridão.
***
Hoje, a febre espantou o sono. Me lembrei que, há alguns meses, pegava no sono quando ouvia as músicas mais antigas de O Teatro Mágico. Decidi por o celular pra tocar “Vaga-lumes” e entre a voz tenra e o violão brincalhão de Fernando Anitelli, recuperei essa lembrança, “pra temperar os sonhos e curar as febres”...



Vaga-lumes

O Teatro Mágico

Brincando de correr entre vaga-lumes
Sem querer pegamos uma estrela baixa
Roubamos todas as flores pra esconder perfumes
Estrelas, vaga-lumes dentro de uma caixa

E foi até estranho, a gente nem deu conta
Talvez na outra ponta, alguém pudesse pensar
Menino vaga-lume, flor, menino estrela, a brisa mais forte veio te buscar

Pra temperar os sonhos e curar as febres
Inserir nas preces do nosso sorriso
Brincando entre os campos das nossas ideias
Somos vaga-lumes a voar perdidos... a voar perdidos...

E quando a gente apaga, tudo fica escuro
Mas o medo não vence, pois não "tamos" só
Por de cima do muro, a gente enxerga o mundo,
A fábrica de deus fazendo gente do pó

Deixa pra lá, o que não interessa,
A gente não tem pressa de viver assim
Feito plateia da nossa própria peça, histórias, prosas, rimas, sem começo e fim

Pra temperar os sonhos e curar as febres
Inserir nas preces do nosso sorriso
Brincando entre os campos das nossas ideias
Somos vaga-lumes a voar perdidos...
A voar perdidos

2 comentários:

  1. Que lindo, Line... me transportou pra minha infância também...
    Beijo!

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    1. Pois é, minha infância tão rica de boas experiências é um alimento para a alma da Aline adulta. Fico contente que te faça feliz também! Beijo

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