Cheguei a Santiago em
13 de dezembro de 2014. Era para ficar apenas 13 horas na cidade: o tempo de
uma conexão entre voos para La Paz, Bolívia. Comentei com um amigo no trabalho
que queria sair do aeroporto, conhecer a cidade e voltar insone para a conexão,
mas ele me falou de um amigo ucraniano que estudou com ele na escola de cinema
de Cuba, que falava português, que era muito boa gente, que trabalha como médico
e diretor de cinema, que poderia me hospedar, inclusive por mais dias... Como
boa geminiana, fiquei dias e dias em dúvida sobre ficar no Chile ou seguir
viagem. Na noite em que cheguei, paguei quase 200 reais na corrida do táxi e
pensei: eu que não fico aqui! Antônio me recebeu com uma reverência budista e
um sorriso hospitaleiro e me julgou triste, mas era só efeito do susto do custo
do táxi mesmo.
De cara descobri que
meu espanhol ali não servia pra nada, mas Antônio achava bonito o português e
mandava muito bem na minha língua materna. Até o hino do Bahia o moço sabia
cantar. Na manhã seguinte, acordei e fui direto na mochila, pegar o bilhete da
conexão, mas bastou levantar e ver essa paisagem pela janela para mudar de
ideia.
Abri a porta do quarto
e Antônio já tinha posto a mesa para o café. Gentilmente se dispôs a me levar a
um passeio. Na avenida Independência, ao lado do prédio onde ele mora, havia
uma feira de artesanatos e preparavam um carnaval cultural. Seguimos a pé, pela
feira. Ele não sabia, mas ali a cidade terminava de me conquistar. Guindas e
cerejas frescas coloriram meu semblante logo na entrada da feira. Guinda é uma
frutinha vermelha vibrante, quase cor de vinho. Perguntei ao vendedor que
frutinha era aquela. Antônio gostou da palavra “frutinha”. Eu gostei da
simpatia do vendedor. Ele me disse: prove, são guindas, muito doces! Ao ver meu
sorriso de aprovação, perguntou: quieres “médio”? Médio é a unidade de medida
mais comum na feira e corresponde a duas vezes o volume que cabe nas duas mãos juntas
de um adulto. Adentramos de fato à feira. As frutas e verduras
que conheço (e amo) chegam a ser três ou quatro vezes maiores aqui. Solos mais
ricos... Mas me impressionou ver uma abóbora maior do que duas melancias
empilhadas!
Seguimos para o Cerro
San Cristoban. Na rua que separa a feira do cerro há muitas igrejas. A de Santa
Filomena é lindíssima, mas também há uma igreja ortodoxa, que dá um colorido
árabe aos ritos católicos; há uma igreja coreana, bem alegre, cheia de crianças
brincando bem felizes e outra japonesa. Na mesma avenida cheia de igrejas, há muitos grafites.
São incrivelmente lindos! Praticamente todos faziam referências à natureza e à
figura humana, um clima meio pagão que super compôs o astral religioso da
avenida.
Igreja de Santa Filomena. Antonio e o que sobrou do mote com huesillos. Já explico o que é.
Dentro da igreja
Catedral ortodoxa
Igreja coreana
Grafites lindos, novinhos em folha!
Ainda na rua, me chamou
atenção uma barraquinha. Vendia o famoso mote com huesillos: suco cor de
caramelo com trigo e um pêssego em calda. É super doce, aliás, nossos hermanos adoram
coisas beeem docinhas. É uma bebida refrescante e alimenta que é uma beleza.
Finalmente chegamos ao
cerro. Logo me impressionei com a quantidade de ciclistas, inclusive com
crianças, a subir da montanha do parque. O cerro é um dos pontos mais altos da
cidade. Se pode vê-la praticamente de qualquer parte da cidade. Antonio e eu, que não
somos atletas, subimos a montanha de funicular, que é como o plano inclinado de
Salvador, um elevador na diagonal com vista panorâmica. Seu funcionamento é bem
simples: são dois bondes ligados por um cabo de força e, enquanto um sobe, o
outro desce. A subida foi emocionante! Conseguimos ficar no melhor ponto do
funicular e aproveitamos bastante a paisagem. De repente ele para, e eu,
extasiada com tamanha vista, achei que fosse o fim. Era só a parada para quem
quer visitar o zoológico. Ainda tinha muito mais vista pela frente. O funicular
nos deixou no alto do cerro, onde havia muitos jovens, ciclistas, casais e
vendedores de comida e roupas. Mais uma vez, achei que tinha visto tudo. Antônio
me conduziu a um ponto ainda mais alto, depois de passar por uma igreja. De lá
ele apontou o rio Mapocho, que corta a cidade ao meio, exatamente entre as
cordilheiras da Costa e a dos Andes, e contou sobre os índios Mapuche e a
formação da cidade. Eu não vou contar essa história aqui simplesmente porque
minha memória não é mais a mesma... Ainda piora com ventania. O que realmente
ficou guardado na memória foi a certeza de nunca ter dado aos meus olhos uma
paisagem de tamanha amplitude. Foi como um super hiper grande plano geral
enquadrado pelo meu campo visual: maior ele fosse, mais informação havia para a
mente ver.
Descemos com o mesmo
bilhete do funicular. Paramos em um restaurante bem simpático e fomos atendidos
por garçons bem divertidos. O maior marketing deles é apresentar ao turista
algum dentre eles que conheça o país do visitante. Mas até que o cliente
escolha almoçar ali eles fazem muito barulho, valendo gritos, bateção de
cadeira de ferro no chão e muito mais. No cardápio, me chamou atenção a opção “pobre”
depois das carnes. Havia pollo pobre, bife pobre... Perguntei do que se tratava
e o garçon respondeu: pobre é sem graça. Eu ri, pensando que fosse sem tempero,
depois lembrei que grasa é gordura, então pobre é light e foi assim que o frango pobre perdeu totalmente a graça...
Comemos um pedaço pra
lá de generoso de salmão, acompanhado de camarões e mexilhões enormes, cobertos
por um molho branco. Acho que os chilenos precisam fazer mais amizade com as
especiarias. O molho só tinha gosto de manteiga e farinha de trigo, separados, assim,
meio cru, meio estranho. Mas os mariscos de mares profundos são show de bola!
Pedi arroz para acompanhar, mas os hermanos gostam mais de batatas, fritas ou
em purê. Achei massa esse negócio de fazer uma refeição com divisões entre
entrada, prato principal, café e sobremesa. Não vamos tão afoitos ao prato
principal. A gente se sente satisfeito mais cedo. E permanece satisfeito por
mais tempo.
Eu já me sentia
presenteada com esse passeio, mas ainda havia mais. Fomos a uma das casas de
Pablo Neruda, chamada “La cascona”. Neruda teve três casas no Chile. La cascona
foi construída para uma amante. Perguntei a Antonio o que significava cascona e
ele me respondeu gesticulando em volta da cabeça: é uma mulher bem descabelada,
assim... Pela auto identificação, obrigada. Por favor, não ria de mim nessa
hora.
Na entrada da biblioteca, o espirituoso Neruda deu um ótimo exemplo.
Bem, os chilenos tem um
jeito peculiar e divertido de morar. Eles aproveitam os terrenos acidentados
para construir cômodos em diferentes planos, intercalados, às vezes, por
jardins com mais frutas do que flores. Os cômodos tem o pé direito baixo e são
relativamente pequenos, geralmente conectados por escadas simples, como se
estivessem inacabadas ou fossem sobras da obra, sei lá. La cascona foi
construída com ares de navio. Uma casa incrível!
Ainda caminhamos bastante
até encontrar uma casa de câmbio. Antônio espirrava muito. Eu não consegui
aprender a falar espirro em espanhol. Que palavra difícil, moço! Mas com um
espirro que ele deu, achei uma moeda de um centavo de peso chileno.
- Não serve para nada,
lamentou.
- Serve para a memória,
respondi com um sorriso.
Chegamos em casa bem
cansados e eu quis dormir um pouco. O carnaval intercultural estava a todo
vapor, mas eu apaguei geral. Acordei às 9 da noite e o sol ainda se preparava
para partir. Amei viver um dia tão longo! Privilégios de quem vive abaixo do
trópico de capricórnio.
Na manhã de 15 de dezembro, Antônio me
permitiu acompanha-lo em seu trabalho de diretor de cinema, mas tinha a
condição de colaborar. Claro que eu fui, feliz e saltitante, realizar o still,
o registro fotográfico do processo de filmagem. Tomamos um ônibus em frente ao
prédio e saltamos na ponte do rio Mapocho. Descemos para o metrô em pleno
horário de pico. Perdemos 10 trens por conta de “violência”, como disse Antônio,
das pessoas para embarcar nesse horário. Brabo mesmo, meu povo! E acho que ele
estava tentando ser educado na minha presença. Em todo caso, uma cena me chocou
e fez rir ao mesmo tempo. O segurança do metrô, que afasta da faixa amarela as
pessoas que querem embarcar, arrancou um homem de dentro de um trem, puxando-o pelo
braço com toda força. Algumas pessoas riram e eu perguntei a Antônio o que o
rapaz tinha feito pra merecer aquilo. Ele só queria sair. E saiu agradecido ao
segurança.
Trocamos de trem várias
vezes e eu disse a Antônio que sem ele eu estaria completamente perdida. O
danadinho respondeu: estaria fodida!
Antônio me explicou que
no metrô há dois tipos de pessoa: os apurados e os atontados. Os apurados são
os atrasados e espertos. Atontados são os mais gentis ou distraídos mesmo.
Naquela ocasião, estávamos muito apurados. Mas tivemos a sorte de pegar um trem
que chegou vazio, sem necessidade de violência para embarcar. A verdade é que eu amei o metrô! Em cada estação havia uma obra de arte diferente e eu até me perdi algumas vezes de propósito só para conferir uma obra a mais...
Estação Cal y Canto ( ao lado da ponte sobre o rio Mapocho)
Estação Los Heroes
Estação Quinta Normal
Saindo do metrô, fomos à casa de Ricardo, produtor do projeto do
filme. Lá havia um cachorro carinhoso, um café e um aviso bem grande na porta:
“Não se vende. Juntos, protegemos nosso bairro”. Fiquei fã! Seguimos de carro
até Pinalolén, uma comunidade ecológica que fica aos pés de um dos cerros mais
bonitos de Santiago, aquele que tem cor de caramelo e que esqueci o nome. A
locação era o Teatro Camino, todo erguido em bioconstrução. Cabra de história e
coragem o Héctor Noguera... Deu vontade de morar lá!
O filme se propunha a
registrar o processo de montagem de um espetáculo de teatro a partir de duas
oficinas: uma conduzida por um professor Russo, o Serguei Filipov, e a outra
com o chileno Héctor. O resultado seria uma homenagem aos 200 anos de
nascimento do poeta Mikhail Lermontov, apresentado no Centro de Ciência e
Cultura Russa de Santiago. Pois é, o Chile e a Rússia são próximos. Junte as
pontas do mapa mundi e você vai ver...
Almoçamos por volta das
14h. Comi o famoso pastel de choclo, um prato bem típico do Chile. A garçonete
sofreu pra me explicar o que era choclo. Fez até um desenho, mas só entendi
quando alguém gritou de outra mesa: é mirro! Bem, depois de contar até cinco,
entendi que era milho. Ufa! Tomei sopa de cogumelos como entrada e papei todo o
pastel de milho, que em verdade, é uma espécie de tortinha montada em uma cumbuca
de barro: uma camada de carne moída, outra de frango desfiada e uma pasta de
milho por cima, beeeeem quente. Eu não gosto de carnes, só de frutos do mar, mas
fora de casa a gente não escolhe.
Então Ricardo nos
deixou em frente a outro parque. Antônio deitou na grama e dormiu por uns
minutinhos. Fui correndo pro columpio: uma gangorra. Havia muitas crianças
brincando no parque. Aliás, há muitas crianças em Santiago. Há muitos casais
apaixonados por toda parte, principalmente nos parques, que também são muitos
na cidade. Faz lembrar do filme Viagem a Milão, de Rosselini. A protagonista
chama atenção para o número de crianças e pessoas bonitas em Milão e a
acompanhante afirma que isso indica a qualidade de vida do lugar.
Tomamos um ônibus para
o centro e saltamos no cerro Santa Lucía. Absurdamente lindo! Assim como na
base do cerro San Cristoban, havia muitos traços medievais no cerro Santa
Lucía. Era como um grande castelo aberto, mas com a forma de uma grande embarcação.
A vista da cidade é linda, especialmente porque dali nós estávamos “dentro” da
cidade, exatamente no centro dela. Bastava girar e ver a cidade acontecendo
para todos os lados. Sem falar que, para uma metrópole, havia até um bom
equilíbrio entre concreto e natureza, com grande destaque para a cordilheira,
toda vigorosa e imponente.
Com Antônio e o anjinho da fonte das moedas e desejos.
O mirante do cerro
Eu, a cidade e a cordilheira dos Andes sem neve
Descemos e vimos um canhão amarrado por arames a um poste. Chamei atenção de Antônio para aquilo, ao que me respondeu: é para que não vá para a guerra! Como é bom conviver com quem enxerga a vida com poesia... Ao final, mergulhamos as mãos na fonte de Netuno, demos mal exemplo para as crianças ao redor e seguimos para o centro russo
Trabalhamos no filme até tarde. Uma delícia trabalhar entre amigos. Já
era mais de 22:30h e Antônio estava cheio de energia: me sinto feliz em fazer o
que gosto, com pessoas que gosto!
A passagem pelo Chile
foi intensa. Fui a Valparaíso e Concón. Contarei isso em outro post. Mas o que
fechou a minha história nessas férias em Santiago foi o Museu da Memória e dos
Direitos Humanos. Uma das experiências mais cruas e impactantes da minha vida. Senti
uma vergonha profunda, além de uma grande revolta, dos militares que procederam
a golpes políticos pelo mundo. Temos que nos lembrar desses acontecimentos sempre,
por mais que nos rasgue a carne e nos seque a garganta. Antônio, sempre sábio,
me consolou: estão todos mortos, sim? São outros tempos...
Plaza de armas
A árvore de Natal mais linda da minha vida todinha
Santuário do Cristo pobre. Aí já nem sei como traduzir essa palavra. Sem graça...
Santuário do Cristo pobre. Aí já nem sei como traduzir essa palavra. Sem graça...
Como sempre, comovida com suas escrituras. E as imagens? Que belas...
ResponderExcluirFico muito feliz por isso, Ludi! A gente conta e já se dá por satisfeita, mas quando outras pessoas nos abraçam nessa vivência através de nossas histórias, aí a vida ganha outro colorido!
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