quinta-feira, 14 de maio de 2015

Diários de mochilagem: Santiago!

Cheguei a Santiago em 13 de dezembro de 2014. Era para ficar apenas 13 horas na cidade: o tempo de uma conexão entre voos para La Paz, Bolívia. Comentei com um amigo no trabalho que queria sair do aeroporto, conhecer a cidade e voltar insone para a conexão, mas ele me falou de um amigo ucraniano que estudou com ele na escola de cinema de Cuba, que falava português, que era muito boa gente, que trabalha como médico e diretor de cinema, que poderia me hospedar, inclusive por mais dias... Como boa geminiana, fiquei dias e dias em dúvida sobre ficar no Chile ou seguir viagem. Na noite em que cheguei, paguei quase 200 reais na corrida do táxi e pensei: eu que não fico aqui! Antônio me recebeu com uma reverência budista e um sorriso hospitaleiro e me julgou triste, mas era só efeito do susto do custo do táxi mesmo.
De cara descobri que meu espanhol ali não servia pra nada, mas Antônio achava bonito o português e mandava muito bem na minha língua materna. Até o hino do Bahia o moço sabia cantar. Na manhã seguinte, acordei e fui direto na mochila, pegar o bilhete da conexão, mas bastou levantar e ver essa paisagem pela janela para mudar de ideia.


Abri a porta do quarto e Antônio já tinha posto a mesa para o café. Gentilmente se dispôs a me levar a um passeio. Na avenida Independência, ao lado do prédio onde ele mora, havia uma feira de artesanatos e preparavam um carnaval cultural. Seguimos a pé, pela feira. Ele não sabia, mas ali a cidade terminava de me conquistar. Guindas e cerejas frescas coloriram meu semblante logo na entrada da feira. Guinda é uma frutinha vermelha vibrante, quase cor de vinho. Perguntei ao vendedor que frutinha era aquela. Antônio gostou da palavra “frutinha”. Eu gostei da simpatia do vendedor. Ele me disse: prove, são guindas, muito doces! Ao ver meu sorriso de aprovação, perguntou: quieres “médio”? Médio é a unidade de medida mais comum na feira e corresponde a duas vezes o volume que cabe nas duas mãos juntas de um adulto. Adentramos de fato à feira. As frutas e verduras que conheço (e amo) chegam a ser três ou quatro vezes maiores aqui. Solos mais ricos... Mas me impressionou ver uma abóbora maior do que duas melancias empilhadas!



Seguimos para o Cerro San Cristoban. Na rua que separa a feira do cerro há muitas igrejas. A de Santa Filomena é lindíssima, mas também há uma igreja ortodoxa, que dá um colorido árabe aos ritos católicos; há uma igreja coreana, bem alegre, cheia de crianças brincando bem felizes e outra japonesa. Na mesma avenida cheia de igrejas, há muitos grafites. São incrivelmente lindos! Praticamente todos faziam referências à natureza e à figura humana, um clima meio pagão que super compôs o astral religioso da avenida.

Igreja de Santa Filomena. Antonio e o que sobrou do mote com huesillos. Já explico o que é.

Dentro da igreja

Catedral ortodoxa

Igreja coreana


Grafites lindos, novinhos em folha!



Ainda na rua, me chamou atenção uma barraquinha. Vendia o famoso mote com huesillos: suco cor de caramelo com trigo e um pêssego em calda. É super doce, aliás, nossos hermanos adoram coisas beeem docinhas. É uma bebida refrescante e alimenta que é uma beleza.
Finalmente chegamos ao cerro. Logo me impressionei com a quantidade de ciclistas, inclusive com crianças, a subir da montanha do parque. O cerro é um dos pontos mais altos da cidade. Se pode vê-la praticamente de qualquer parte da cidade. Antonio e eu, que não somos atletas, subimos a montanha de funicular, que é como o plano inclinado de Salvador, um elevador na diagonal com vista panorâmica. Seu funcionamento é bem simples: são dois bondes ligados por um cabo de força e, enquanto um sobe, o outro desce. A subida foi emocionante! Conseguimos ficar no melhor ponto do funicular e aproveitamos bastante a paisagem. De repente ele para, e eu, extasiada com tamanha vista, achei que fosse o fim. Era só a parada para quem quer visitar o zoológico. Ainda tinha muito mais vista pela frente. O funicular nos deixou no alto do cerro, onde havia muitos jovens, ciclistas, casais e vendedores de comida e roupas. Mais uma vez, achei que tinha visto tudo. Antônio me conduziu a um ponto ainda mais alto, depois de passar por uma igreja. De lá ele apontou o rio Mapocho, que corta a cidade ao meio, exatamente entre as cordilheiras da Costa e a dos Andes, e contou sobre os índios Mapuche e a formação da cidade. Eu não vou contar essa história aqui simplesmente porque minha memória não é mais a mesma... Ainda piora com ventania. O que realmente ficou guardado na memória foi a certeza de nunca ter dado aos meus olhos uma paisagem de tamanha amplitude. Foi como um super hiper grande plano geral enquadrado pelo meu campo visual: maior ele fosse, mais informação havia para a mente ver.





Vista da parte mais alta do mirante do cerro San Cristoban

Descemos com o mesmo bilhete do funicular. Paramos em um restaurante bem simpático e fomos atendidos por garçons bem divertidos. O maior marketing deles é apresentar ao turista algum dentre eles que conheça o país do visitante. Mas até que o cliente escolha almoçar ali eles fazem muito barulho, valendo gritos, bateção de cadeira de ferro no chão e muito mais. No cardápio, me chamou atenção a opção “pobre” depois das carnes. Havia pollo pobre, bife pobre... Perguntei do que se tratava e o garçon respondeu: pobre é sem graça. Eu ri, pensando que fosse sem tempero, depois lembrei que grasa é gordura, então pobre é light e foi assim que o frango pobre perdeu totalmente a graça...
Comemos um pedaço pra lá de generoso de salmão, acompanhado de camarões e mexilhões enormes, cobertos por um molho branco. Acho que os chilenos precisam fazer mais amizade com as especiarias. O molho só tinha gosto de manteiga e farinha de trigo, separados, assim, meio cru, meio estranho. Mas os mariscos de mares profundos são show de bola! Pedi arroz para acompanhar, mas os hermanos gostam mais de batatas, fritas ou em purê. Achei massa esse negócio de fazer uma refeição com divisões entre entrada, prato principal, café e sobremesa. Não vamos tão afoitos ao prato principal. A gente se sente satisfeito mais cedo. E permanece satisfeito por mais tempo.
Eu já me sentia presenteada com esse passeio, mas ainda havia mais. Fomos a uma das casas de Pablo Neruda, chamada “La cascona”. Neruda teve três casas no Chile. La cascona foi construída para uma amante. Perguntei a Antonio o que significava cascona e ele me respondeu gesticulando em volta da cabeça: é uma mulher bem descabelada, assim... Pela auto identificação, obrigada. Por favor, não ria de mim nessa hora.



Na entrada da biblioteca, o espirituoso Neruda deu um ótimo exemplo.

Bem, os chilenos tem um jeito peculiar e divertido de morar. Eles aproveitam os terrenos acidentados para construir cômodos em diferentes planos, intercalados, às vezes, por jardins com mais frutas do que flores. Os cômodos tem o pé direito baixo e são relativamente pequenos, geralmente conectados por escadas simples, como se estivessem inacabadas ou fossem sobras da obra, sei lá. La cascona foi construída com ares de navio. Uma casa incrível!
Ainda caminhamos bastante até encontrar uma casa de câmbio. Antônio espirrava muito. Eu não consegui aprender a falar espirro em espanhol. Que palavra difícil, moço! Mas com um espirro que ele deu, achei uma moeda de um centavo de peso chileno.
- Não serve para nada, lamentou.
- Serve para a memória, respondi com um sorriso.
Chegamos em casa bem cansados e eu quis dormir um pouco. O carnaval intercultural estava a todo vapor, mas eu apaguei geral. Acordei às 9 da noite e o sol ainda se preparava para partir. Amei viver um dia tão longo! Privilégios de quem vive abaixo do trópico de capricórnio.


 Na manhã de 15 de dezembro, Antônio me permitiu acompanha-lo em seu trabalho de diretor de cinema, mas tinha a condição de colaborar. Claro que eu fui, feliz e saltitante, realizar o still, o registro fotográfico do processo de filmagem. Tomamos um ônibus em frente ao prédio e saltamos na ponte do rio Mapocho. Descemos para o metrô em pleno horário de pico. Perdemos 10 trens por conta de “violência”, como disse Antônio, das pessoas para embarcar nesse horário. Brabo mesmo, meu povo! E acho que ele estava tentando ser educado na minha presença. Em todo caso, uma cena me chocou e fez rir ao mesmo tempo. O segurança do metrô, que afasta da faixa amarela as pessoas que querem embarcar, arrancou um homem de dentro de um trem, puxando-o pelo braço com toda força. Algumas pessoas riram e eu perguntei a Antônio o que o rapaz tinha feito pra merecer aquilo. Ele só queria sair. E saiu agradecido ao segurança.
Trocamos de trem várias vezes e eu disse a Antônio que sem ele eu estaria completamente perdida. O danadinho respondeu: estaria fodida!
Antônio me explicou que no metrô há dois tipos de pessoa: os apurados e os atontados. Os apurados são os atrasados e espertos. Atontados são os mais gentis ou distraídos mesmo. Naquela ocasião, estávamos muito apurados. Mas tivemos a sorte de pegar um trem que chegou vazio, sem necessidade de violência para embarcar. A verdade é que eu amei o metrô! Em cada estação havia uma obra de arte diferente e eu até me perdi algumas vezes de propósito só para conferir uma obra a mais... 

Estação Cal y Canto ( ao lado da ponte sobre o rio Mapocho)

              Estação Los Heroes

      Estação Quinta Normal

Saindo do metrô, fomos à casa de Ricardo, produtor do projeto do filme. Lá havia um cachorro carinhoso, um café e um aviso bem grande na porta: “Não se vende. Juntos, protegemos nosso bairro”. Fiquei fã! Seguimos de carro até Pinalolén, uma comunidade ecológica que fica aos pés de um dos cerros mais bonitos de Santiago, aquele que tem cor de caramelo e que esqueci o nome. A locação era o Teatro Camino, todo erguido em bioconstrução. Cabra de história e coragem o Héctor Noguera... Deu vontade de morar lá!






O filme se propunha a registrar o processo de montagem de um espetáculo de teatro a partir de duas oficinas: uma conduzida por um professor Russo, o Serguei Filipov, e a outra com o chileno Héctor. O resultado seria uma homenagem aos 200 anos de nascimento do poeta Mikhail Lermontov, apresentado no Centro de Ciência e Cultura Russa de Santiago. Pois é, o Chile e a Rússia são próximos. Junte as pontas do mapa mundi e você vai ver...
Almoçamos por volta das 14h. Comi o famoso pastel de choclo, um prato bem típico do Chile. A garçonete sofreu pra me explicar o que era choclo. Fez até um desenho, mas só entendi quando alguém gritou de outra mesa: é mirro! Bem, depois de contar até cinco, entendi que era milho. Ufa! Tomei sopa de cogumelos como entrada e papei todo o pastel de milho, que em verdade, é uma espécie de tortinha montada em uma cumbuca de barro: uma camada de carne moída, outra de frango desfiada e uma pasta de milho por cima, beeeeem quente. Eu não gosto de carnes, só de frutos do mar, mas fora de casa a gente não escolhe.
Então Ricardo nos deixou em frente a outro parque. Antônio deitou na grama e dormiu por uns minutinhos. Fui correndo pro columpio: uma gangorra. Havia muitas crianças brincando no parque. Aliás, há muitas crianças em Santiago. Há muitos casais apaixonados por toda parte, principalmente nos parques, que também são muitos na cidade. Faz lembrar do filme Viagem a Milão, de Rosselini. A protagonista chama atenção para o número de crianças e pessoas bonitas em Milão e a acompanhante afirma que isso indica a qualidade de vida do lugar.


Tomamos um ônibus para o centro e saltamos no cerro Santa Lucía. Absurdamente lindo! Assim como na base do cerro San Cristoban, havia muitos traços medievais no cerro Santa Lucía. Era como um grande castelo aberto, mas com a forma de uma grande embarcação. A vista da cidade é linda, especialmente porque dali nós estávamos “dentro” da cidade, exatamente no centro dela. Bastava girar e ver a cidade acontecendo para todos os lados. Sem falar que, para uma metrópole, havia até um bom equilíbrio entre concreto e natureza, com grande destaque para a cordilheira, toda vigorosa e imponente.

Com Antônio e o anjinho da fonte das moedas e desejos. 

O mirante do cerro


 Eu, a cidade e a cordilheira dos Andes sem neve

             Descemos e vimos um canhão amarrado por arames a um poste. Chamei atenção de Antônio para aquilo, ao que me respondeu: é para que não vá para a guerra! Como é bom conviver com quem enxerga a vida com poesia... Ao final, mergulhamos as mãos na fonte de Netuno, demos mal exemplo para as crianças ao redor e seguimos para o centro russo



Trabalhamos no filme até tarde. Uma delícia trabalhar entre amigos. Já era mais de 22:30h e Antônio estava cheio de energia: me sinto feliz em fazer o que gosto, com pessoas que gosto!
A passagem pelo Chile foi intensa. Fui a Valparaíso e Concón. Contarei isso em outro post. Mas o que fechou a minha história nessas férias em Santiago foi o Museu da Memória e dos Direitos Humanos. Uma das experiências mais cruas e impactantes da minha vida. Senti uma vergonha profunda, além de uma grande revolta, dos militares que procederam a golpes políticos pelo mundo. Temos que nos lembrar desses acontecimentos sempre, por mais que nos rasgue a carne e nos seque a garganta. Antônio, sempre sábio, me consolou: estão todos mortos, sim? São outros tempos...
  
 Plaza de armas


 A árvore de Natal mais linda da minha vida todinha

Santuário do Cristo pobre. Aí já nem sei como traduzir essa palavra. Sem graça...



2 comentários:

  1. Como sempre, comovida com suas escrituras. E as imagens? Que belas...

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  2. Fico muito feliz por isso, Ludi! A gente conta e já se dá por satisfeita, mas quando outras pessoas nos abraçam nessa vivência através de nossas histórias, aí a vida ganha outro colorido!

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