sábado, 2 de abril de 2011

Duas autoras, dois olhares

Foi em 2001 que eu li pela primeira vez um poema de Valdelice Pinheiro. Estava na camiseta de um amigo, filósofo e ateu. Fiquei estupefata com a combinação de tamanha força, naturalidade com que falava em amor, morte e vida.
Foi em 2005 que li pela primeira vez um poema de Adélia Prado. Escolhia um livro para presentear a outro amigo, filósofo e seminarista. Me encantei com o olhar pueril, com descrições tão singelas do contato com o amor, a morte e o desejo.
Valdelice é puro impacto. Canta o homem rude, a vida campestre, a criação, a infância e a natureza.
Adélia escreve com olhos de descoberta, velados pela religiosidade, pelo desejo contido que vez ou outra se transparece, se faz vida cotidiana.
Ambas tem ludicidade no poetizar a vida cotidiana.
A primeira é baiana, de Itabuna. A segunda é mineira, de Divinópolis. E pra não deixar de pôr as duas terras em diálogo, hoje, ouso aproximá-las.

Espantalho

Espantalho eu sei
que sou.
Mas os meus braços,
abertos em cruz
e mesmo que de palha e vento
se sustentem,
não querem o espanto,
a distância do pássaro.
Meus braços buscam
na última agonia
de um amor sem jeito,
imaginar-se planta,
conceber-se galho,
desejar-se fruto.


Poema de amor para um antigo amado

Atravesso
o morno espaço
de teu corpo,
cumpro
a distância ligeira
de teus passos
e me componho
e me acho
e me refaço
e chego
na doçura infinita
de teus braços

Pitangas

Um orvalho na folha,
uma abelha,
um todo de flores
como se fossem estrelas,
como se fossem luz...
um sonho próximo,
próximas pitangas.
E em minhas mãos,
do parto branco
desta primavera
como quem reza
e canta,
esse som vermelho
e doce
que se toca
e come.

Valdelice Pinheiro
Morte morreu


Quando o ano acinzenta-se em agosto
e chove sobre árvores
que mesmo antes das chuvas já reverdeceram
da mesma estação levantam-se
nossos mortos queridos
e os passarinhos que ainda vão nascer.
“Ó morte, onde está tua vitória?”
Eh tempo bom, diz meu pai.
A mãe acalma-se
tomam-se as providências sensatas.
todos pra janela, espiar as goteiras:
“Chuva choveu, goteira pingou
Pergunta ao papudo se o papo molhou”
Pergunta a menina se a vida acabou.


Pranto para comover Jonathan

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é o meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo.
Ama e nem sabe mais que ama.



A bela adormecida

Estou alegre e o motivo
beira secretamente à humilhação,
porque aos 50 anos
não posso mais fazer curso de dança,
escolher profissão,
aprender a nadar como se deve.
No entanto, não sei se é por causa das águas,
deste ar que desentoca do chão as formigas aladas,
ou se é por causa dele que volta
e põe tudo arcaico como a matéria da alma,
se você vai ao pasto,
se você olha o céu,
aquelas frutinhas travosas,
aquela estrelinha nova,
sabe que nada mudou.
O pai está vivo e tosse,
a mãe pragueja sem raiva na cozinha.
Assim que escurecer vou namorar.
Que mundo ordenado e bom!
Namorar quem?
Minha alma nasceu desposada
com um marido invisível.
Quando ele fala roreja,
quando ele vem eu sei,
Porque as hastes se inclinam.
Eu fico tão atenta que adormeço
a cada ano mais.
Sob juramento lhes digo:
tenho 18 anos. Incompletos.

Adélia Prado

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