Minha relação de afeto com o norte do país não é de agora.
Aos três anos de idade fiz a primeira travessia de um lado a outro do país,
partindo de Canavieiras, minha cidade natal, para Vilhena, em Rondônia.
Da primeira cidade, guardo a lembrança do mar, da nossa casa com quintal enorme, cheio de hortências no jardim e árvores ao fundo. Lembro dos passeios na cadeirinha de metal que tio punha no guidon da bicicleta para irmos à ponte do Lloid ver o pôr do sol. Vibrávamos cada vez que um golfinho saltava rodopiando! Em verdade, não lembro bem se eram golfinhos ou peixes de bico, que tem muito por lá. Da segunda cidade, me lembro bem do clima quente, das chuvas torrenciais e dos quintais bem grandes que todas as casas do bairro tinham.
Em nosso quintal havia uma pequena árvore ao fundo, um
cachorro, um tatu e um jabuti. Também tinha muito barro. Eu adorava brincar com
barro e isso vó me deixava fazer. Tinha uma gangorra que tio Rui fez com ripas
e tábuas e corda. Frequentemente, ele precisava serrar tábuas e ripas, então as
apoiava em um banquinho, sustentava uma ponta com o pé e me mandava fica em pé
na outra ponta. De repente, uma parte disso virou uma gangorra da manhã para
tarde. E tinha cercas que a gente gostava de pular pra visitar os vizinhos.
Nelas se esticavam pés de maracujá que nos presenteavam com flores lindíssimas
e frutos deliciosos.
São bem distintas as imagens dos dois lugares, como distintas
eram as paisagens que a gente contemplava no trajeto de um a outro. Eram quase
três dias de viagem em um ônibus... Dava pra ver floresta do sul da Bahia, as pedras
enormes do Espírito Santo, depois muita caatinga até chegar numa cena chata de
soja, muita soja entre Mato Grosso e a entrada de Rondônia. Minha avó sempre
repetia que o céu de Rondônia ficava mais perto da gente do que o da Bahia...
De fato, o céu de lá tinha mais cor. Acho que é por conta da terra avermelhada
que contrasta bastante com o azul do céu.
Moramos em Rondônia durante três anos não consecutivos, mas
acabamos fincando pé em Itabuna. Lá cresci, estudei, me formei, ingressei na
docência, fiz amizades de longa data. De lá também vi vó partir para o norte
algumas vezes... Sem mim. Em 2010, ela quis ir ao Acre, onde meus tios estavam
morando e prosperando, tanto em patrimônio como em amor. Foi a primeira vez que
senti vontade de pisar naquelas terras. Eu já conhecia uma acriana pra lá de
legal que falava super bem do mercado de trabalho de sua terra. Ela é linda,
artista, inteligente, agradável, espiritualizada e ainda fazia cerveja suja e outras delícias pra
gente de vez em quando. Enfim, uma pessoa em quem eu confio bastante. Não
demorou muito para surgir outra conterrânea dela na equipe de trabalho, igualmente
rica em predicados e lindeza. Então eu realmente contava com bons motivos para alimentar
o carinho pela Amazônia e sua gente.
A vida de adulta, porém, não é tão flexível a ponto de me
permitir uma temporada maior em outro local. Uma semana fora é um presente que
só um grande congresso poderia ocasionar. E assim foi. Primeiro em 2013, quando
fui a Manaus. Em companhia de amigas queridas, consegui unir boas discussões
acadêmicas a novos desbravamentos, passeios e prosas com gente bacana,
intelectual e sensível às artes. A imensidão das águas, a vastidão dos sabores
e a hospitalidade dos manauaras marcaram aqueles dias. Mas Manaus tinha uma
característica que me repelia: um impulso intenso ao consumo. Um espanhol que
estava hospedado no mesmo hostel que nós conseguiu definir bem esse sentimento
quando disse que Manaus é uma "cidade-supermercado".
Em 2014, finalmente fui ao Acre. Ainda era março
quando minha tia compartilhou um álbum de fotos muito lindas da cidade de Rio
Branco no facebook e eu fiquei
sonhando com um congresso por lá. E não foi que, no dia seguinte, em reunião
com o grupo de pesquisa, surgiu a oportunidade de ir à UFAC? Consegui muitas
formas de apoio, mas perdi o voo. Chorei feito uma criança, mas fiz valer a
confiança da orientadora e das colegas de pesquisa um mês depois. Queria muito
rever meus tios e sentir o lugar, saber de uma vez por que o Acre me atraía
tanto...
Chegando lá, notei que tinha fumaça no aeroporto. Muita
fumaça. Perguntei a tia o por que e ela respondeu apenas: ah, é alguém queimando
alguma coisa por aí. Tio quis me mostrar a cidade e me levou até o centro. Lá
também tinha muita fumaça. Comentei isso mais uma vez e tia nem disse nada.
Partimos para Senador Guiomar, a cidade vizinha onde os tios moram. Pra meu
espanto, lá também tinha muita fumaça:
- Tia, por que tanta
fumaça até aqui?
- Ah, é uma temporada de queimadas... Fica assim por um
tempo.
Graças a Deus eu não vi mais fumaça nos dias seguintes. E se
a impressão inicial foi marcada por essa notícia triste, os dias posteriores
foram de grande surpresa e animação. No domingo, recebi a visita de uma das
amigas que fiz em BH e seu companheiro. Fomos à Quixadá, conhecer a cidade cenográfica da
Minissérie Amazônia: de Galvez a Chico Mendes.
Casa grande do seringalista da minissérie. Hoje funciona um museu que apresenta parte das histórias do Acre e da série de TV. O espaço fica mesmo em meio a um seringal e conta com uma pousada, restaurante, deck, igreja e brinquedoteca.
Essa é a segunda igreja mais antiga do Acre
Rio Acre
Ainda tomamos um bom tacacá com coca-cola, picolé de buriti, mingau de tapioca com banana... Tudo regado a boa prosa e boas risadas.
Mas eu não imaginava o
quanto ficaria impressionada com o campus. A UFAC é linda! E muuuuito grande! A
abertura do Colóquio de religiões aconteceu no Teatro universitário, novinho,
fresquinho, lindo. Ao mesmo tempo, a abertura da Semana acadêmica de
comunicação acontecia no anfiteatro. E como se não bastasse, entre os dois
espaços havia uma obra: o Centro de convenções universitário. Me perdi várias
vezes pelos longos espaços do campus. Me perdi também nas horas de contemplação
do lago, das capivaras, dos pássaros e do por do sol. Em uma semana, participei
de dois congressos, apresentei sete trabalhos, coordenei um grupo de trabalho e
fiz uma conferência surpresa. Foi um recorde, sem dúvida! Mas eu não pretendo superar
esses números nessa existência e você deve imaginar bem os meus motivos...
Mesmo em meio a essa atividade tão intensa na Universidade,
me permiti caminhar pela cidade no intervalo de almoço como nas minhas
primeiras viagens: sem rota, sem pressa, sem timidez de prosear com quem nunca
vi na vida. Visitei o Novo mercado velho, o Palácio Rio Branco, o Museu dos
autonomistas, a Biblioteca da Floresta, a livraria Paim... Caminhei a valer,
fazendo de conta que a sensação térmica não era de quase 40 graus. Mas o que
fez valer a pena mesmo foi a receptividade dos acrianos: se o meu olhar
cruzasse com o de outra pessoa na rua, ela logo me ofertava um sorriso e um bom
dia. Coisa igual eu nunca vi!
E outra coisa que eu não posso deixar de contar: os dias em
que acompanhei a tia em seu ofício. Ela é enfermeira e atua em uma região que
fica entre Senador Guiomar e Rio Branco e eu pude participar de visitas a
algumas pessoas da comunidade. De cara, conheci uma baiana, a dona Isaurildes.
O cheiro de cocada nos convidava a entrar.
Toda vestida de simpatia, ela mostrou os seus quitutes e nos convidou pra comer do seu acarajé na quinta à noite, no largo do Mercado velho. Em seguida, visitamos seu Antônio e dona Maria. Ele estava a alguns dias de completar 100 anos; ela, que só tinha 71, consultou a ele sobre a própria idade, porque é ele quem cuida dela. Histórias pra contar não faltavam e ele não as economizava, não... Mas partimos rumo ao centro de recuperação da União do Vegetal. Esse grupo faz trabalho social bem importante, se observarmos a situação crítica de quem está numa tríplice-fronteira e não topou com um educador para ampliar suas perspectivas de futuro. Achei importante essas ponderações sobre os (des)limites de atuação do campo religioso. De que vale cuidar apenas do espírito se ao nosso redor as pessoas estiverem em risco social? E se o Estado não as alcançar, quem vai promover nossos jovens? Respeitar a tradição é pedra fundamental na unidade de um grupo, mas o respeito ao ser humano é pedra fundamental de qualquer grupo.
Dona Isaurildes e tia Lina
Toda vestida de simpatia, ela mostrou os seus quitutes e nos convidou pra comer do seu acarajé na quinta à noite, no largo do Mercado velho. Em seguida, visitamos seu Antônio e dona Maria. Ele estava a alguns dias de completar 100 anos; ela, que só tinha 71, consultou a ele sobre a própria idade, porque é ele quem cuida dela. Histórias pra contar não faltavam e ele não as economizava, não... Mas partimos rumo ao centro de recuperação da União do Vegetal. Esse grupo faz trabalho social bem importante, se observarmos a situação crítica de quem está numa tríplice-fronteira e não topou com um educador para ampliar suas perspectivas de futuro. Achei importante essas ponderações sobre os (des)limites de atuação do campo religioso. De que vale cuidar apenas do espírito se ao nosso redor as pessoas estiverem em risco social? E se o Estado não as alcançar, quem vai promover nossos jovens? Respeitar a tradição é pedra fundamental na unidade de um grupo, mas o respeito ao ser humano é pedra fundamental de qualquer grupo.
E como se diz por aí: de tanto olhar para o outro, uma hora a
gente precisa olhar para dentro. Como foi bom estar em família, pensar
nossas necessidades e potencialidades, conversar, conhecer e gostar mais de
nossa história, querer o melhor para quem é por nós. Em grande parte, acredito
que era isso o que me atraía tão fortemente para o norte em 2014. Muita gratidão a meus tios é o trago de melhor na memória e no coração.
Enfim, a semana passou rápido. Quero muito voltar a Rio
Branco em período de férias. Faltou fazer os passeios de balão e de catraia;
adentrar a um seringal pra ver, ouvir e sentir a floresta respirar; visitar a
casa de Chico Mendes, em Xapuri; conhecer a farinha de Cruzeiro do sul e
esticar até a Bolívia e o Peru. Mas todas as experiências valeram muito: as
lembranças de cada lugar, cada sorriso, cada gentileza, cada abraço estão bem
guardadas comigo, naquela caixinha de boas vivências e sentimentos que a gente
tem em um canto especial do coração.
Giselle,sempre linda, na ponte JK. Que venham mais travessias!
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