Quando
eu tinha 5 anos de idade, vó foi atropelada e ficou longos dois anos na cama. A
perna estava imobilizada, mas a mente continuava bastante ativa. Ela passava
boa parte do tempo a assistir televisão, receber visitas, receber cuidados
médicos, cuidar de mim.
Desse tempo dedicado à TV, vó
manteve o hábito de assistir a programas para donas de casa, daqueles que duram
quase a tarde inteira. De tempos em tempos, minha tia Ronilda e ela dedicavam
um domingo a produzir biscoitos. Tia preparava as massas a partir de várias
receitas que vó cuidadosamente anotava dos programas ou recortava
das embalagens de maisena, açúcar, farinha de trigo... Tinha massas mais
consistentes, outras mais líquidas, outras mais escuras ou claras. A maioria
era batida à mão, mas acho que algumas usavam o liquidificador ou a batedeira
que vó comprou no baú da felicidade. E algumas receitas tinham a manteiga
substituída por nata que tia guardava diariamente no congelador, coletada do leite
que a gente comprava com um ticket na venda da esquina. Eu sempre esticava
o olho na tentativa de ver se o pote de nata já estava cheio e assim ter certa previsão
de quando teríamos uma tarde de produção.
Tia se punha na cozinha a reunir
os ingredientes, depois trazia a massa e a assadeira até a cama para
vó modelar os biscoitos e já os
acomodar para irem ao forno. Vó dava formato aos biscoitos, às vezes com bicos
modeladores, outras vezes com um cubo que tinha desenhos variados em cada face
- lua, sol, estrela, coração -, às vezes punha um tico de massa entre as mãos e
fazia palitinhos, bolinhas que seriam carinhosamente pisadas com um
garfo...
A
minha participação era “supervisionar”, entre as brincadeiras na rua ou no “oitão”,
essas mudanças de massas e de recursos para depois explicar aos coleguinhas
como cada biscoito tinha uma ciência diferente. Ah, eu também “limpava” a
tigela de algumas massas usando o dedo e a língua. Era como um controle de
qualidade... E eu nem me lambuzava pra ninguém ter que parar a produção. Vó se
divertia de ver a minha surpresa quando a avistava já com outra massa, outra
ferramenta modeladora e soltava a perguntinha básica: já pode limpar a tigela?
Ao final do domingo, todos os
potes de mantimentos ficavam cheios de biscoitos para o lanche em casa e na
escola. A minha merendeira sempre tinha sequilhos e biscoitos em formatos para
além dos redondos ou retangulares daqueles vendidos nos mercados.
Não me lembro de quando elas deixaram de fazer os biscoitos juntas, nem durante quanto tempo essa “produção de larga escala” existiu. Lembro que vó ainda ficou outros dois anos em uma cadeira com rodinhas e outro tanto de tempo usando muletas, mas eu nunca a vi chorar ou reclamar da situação. Ela gemia muito de dor, mas nunca uma dor de revolta ou queixume. Não, todas as lembranças que guardo daqueles tempos são de vó sorrindo, como uma ladie, como disse tia Dinalva.
Eu vim aqui achando que você ia contar que foi comprar os MEUS biscoitos, e que estava chegando na terra... me deparo com tanta poesia embutida nas recordações...
ResponderExcluirConfesso que foi bem melhor! ;)
Beijo!!!
Calma, Bel! Seus biscoitos chegarão em breve!!! Por enquanto, podemos nos alimentar das memórias... Beijo
ResponderExcluir