segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Os biscoitos de domingo

Quando eu tinha 5 anos de idade, vó foi atropelada e ficou longos dois anos na cama. A perna estava imobilizada, mas a mente continuava bastante ativa. Ela passava boa parte do tempo a assistir televisão, receber visitas, receber cuidados médicos, cuidar de mim.
Desse tempo dedicado à TV, vó manteve o hábito de assistir a programas para donas de casa, daqueles que duram quase a tarde inteira. De tempos em tempos, minha tia Ronilda e ela dedicavam um domingo a produzir biscoitos. Tia preparava as massas a partir de várias receitas que vó cuidadosamente anotava dos programas ou recortava das embalagens de maisena, açúcar, farinha de trigo... Tinha massas mais consistentes, outras mais líquidas, outras mais escuras ou claras. A maioria era batida à mão, mas acho que algumas usavam o liquidificador ou a batedeira que vó comprou no baú da felicidade. E algumas receitas tinham a manteiga substituída por nata que tia guardava diariamente no congelador, coletada do leite que a gente comprava com um ticket na venda da esquina. Eu sempre esticava o olho na tentativa de ver se o pote de nata já estava cheio e assim ter certa previsão de quando teríamos uma tarde de produção.
Tia se punha na cozinha a reunir os ingredientes, depois trazia a massa e a assadeira até a cama para vó modelar os biscoitos e já os acomodar para irem ao forno. Vó dava formato aos biscoitos, às vezes com bicos modeladores, outras vezes com um cubo que tinha desenhos variados em cada face - lua, sol, estrela, coração -, às vezes punha um tico de massa entre as mãos e fazia palitinhos, bolinhas que seriam carinhosamente pisadas com um garfo... 
A minha participação era “supervisionar”, entre as brincadeiras na rua ou no “oitão”, essas mudanças de massas e de recursos para depois explicar aos coleguinhas como cada biscoito tinha uma ciência diferente. Ah, eu também “limpava” a tigela de algumas massas usando o dedo e a língua. Era como um controle de qualidade... E eu nem me lambuzava pra ninguém ter que parar a produção. Vó se divertia de ver a minha surpresa quando a avistava já com outra massa, outra ferramenta modeladora e soltava a perguntinha básica: já pode limpar a tigela?
Ao final do domingo, todos os potes de mantimentos ficavam cheios de biscoitos para o lanche em casa e na escola. A minha merendeira sempre tinha sequilhos e biscoitos em formatos para além dos redondos ou retangulares daqueles vendidos nos mercados.

Não me lembro de quando elas deixaram de fazer os biscoitos juntas, nem durante quanto tempo essa “produção de larga escala” existiu. Lembro que vó ainda ficou outros dois anos em uma cadeira com rodinhas e outro tanto de tempo usando muletas, mas eu nunca a vi chorar ou reclamar da situação. Ela gemia muito de dor, mas nunca uma dor de revolta ou queixume. Não, todas as lembranças que guardo daqueles tempos são de vó sorrindo, como uma ladie, como disse tia Dinalva.  
A foto é repetida de outro post, mas é exatamente desse período. Foi um clique do padre, depois de fazer uma celebração no lar para ela. E é esse o sorriso que ela conserva até hoje!



2 comentários:

  1. Eu vim aqui achando que você ia contar que foi comprar os MEUS biscoitos, e que estava chegando na terra... me deparo com tanta poesia embutida nas recordações...
    Confesso que foi bem melhor! ;)
    Beijo!!!

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  2. Calma, Bel! Seus biscoitos chegarão em breve!!! Por enquanto, podemos nos alimentar das memórias... Beijo

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